Alguns filhos da literatura russa eram especialistas em
demônios. Trechos perturbadores de obras de Dostoiévski e Tolstoi, por exemplo,
usavam este simbolismo demoníaco para representar o sofrimento humano. Quando
terminou Brasil 1 x 1 Rússia, no último 25/3 em Londres, Casagrande desabotoou
o terno de comentarista, suspirou feliz com o dever cumprido e comemorou, sem
ninguém saber, mais uma vitória sobre seus demônios brasileiros.
Craque do
Corinthians, Caldense, Seleção, Porto, Ascoli, Torino, Flamengo, São Paulo,
Walter Casagrande Júnior, desde moleque aprendeu a conviver com a luz na cara.
Seja a incômoda lanterna de algum policial a serviço da ditadura, seja os
holofotes potentes e frágeis do mundo do futebol. Para muitos, é o melhor
comentarista da televisão brasileira. Identificado com o Corinthians, sempre
foi respeitado pelos torcedores de todos os times, paulistas ou não.
Mas durante um
ano, Casão viveu na escuridão. No porão dos próprios pesadelos. Internando numa
clínica para dependentes químicos no interior de São Paulo, enfrentou um exílio
forçado e conseguiu da opinião pública algo raríssimo hoje em dia. Respeito e
solidariedade. Talvez para retribuir, do seu jeito, esta atitude generosa do
público, Casagrande aceitou o convite do jornalista Gilvan Ribeiro. Juntos,
eles cunharam um dos melhores livros do ano. “Casagrande e seus demônios”.
Casagrande é
ídolo do escritor Marcelo Rubens Paiva, uma das melhores cabeças do país.
“Casão faz questão de contar o inferno que viveu quando era viciado em drogas e
sua internação, pois para ele é fundamental passar adiante a experiência,
dividir as dores da dependência e alerter para os perigos de um vício
frenético, sem preconceitos, desvios ou mentiras. A verdade ajuda a sanidade.”
Casagrande também
é ídolo do escritor Antonio Prata: “Casagrande é um dos meus heróis –– e não
estou falando só de futebol. Quantas pessoas por aí podem se orgulhar de ter
gravado o nome nas súmulas dos principais jogos do país, nos anos 1980, e nos
arquivos do SNI ( Serviço Nacional de Informações, órgão dedicado a espionar os
cidadãos “suspeitos”, durante a ditadura)? Quantos podem dizer que subiram ao
palco para cantar com a Rita Lee e ao palanque para lutar pelas diretas?
Quantos, atuando numa das melhores equipes do futebol profissional brasileiro,
arrumariam tempo para continuar jogando num time de várzea, o Veneno, da rua
Jaborandi, e ainda ajudar a fundar um partido político, o Partido dos
Trabalhadores?”
O livro é
exatamente como os comentários de Casagrande. Franco, direto, profundo e sem a
menor preocupação em agradar alguém ou fazer média. Gilvan Ribeiro passeia pela
vida de Walter Casagrande Júnior por vezes em ordem cronológica, por vezes
usando o recurso do “flashback” com sutileza, poesia e maestria.
Assim como um
contra-ataque fulminante arquitetado por Biro-Biro, Zenon, Sócrates e
Casagrande, o livro é cativante, rápido e difícil de largar. São 234 páginas
que passeiam pela vida de um dos jogadores mais interessantes do futebol
brasileiro. Por vezes maldito, por vezes corajoso, o atacante cabeludo de
sotaque carregado e beiços atrevidos fez história em campo. E, depois que
parou, precisou suar a camisa para não perder a partida mais importante da
vida. A própria vida.
A primeira parte
do livro é pauleira, como um rock ouvido no volume máximo. Gilvan Ribeiro nos
conta as várias internações de Casagrande, antes e depois da Copa de 2006. Na
Alemanha, ele foi curado e revigorado, trabalhou muito bem, mas os tais
demônios suspenderam a trégua no Brasil. O que mais doía no coração do craque
era como andava fazendo mal à própria família, já que conseguira esconder o
vício da mulher e dos três filhos durante muito tempo. Antes da internação
final, em 2007, Casão estava separado, recluso e solitário. Uma presa fácil,
como ele mesmo conta.
“Eu tinha
visões horríveis, tudo parecia muito real. estava assustado pra caralho, via
demônios pelo apartamento inteiro. Eram maiores do que eu, com dois ou três
metros de altura. alguns apareciam no quarto, outros na sala, e até uma imagem
de mulher surgiu refletida na geladeira. Aí́ eu comecei a ficar com medo de ir
à cozinha, já não comia, nem me sentava no sofá, porque eu os via em todos os
lugares, todos os dias, constantemente. Não falavam ou me ameaçavam, mas a
simples presença deles era aterrorizante. Isso durou um mês, sei lá, um mês e
meio”, conta o ídolo.
Passado o
inferno, o livro volta no tempo, pula o purgatório e chega ao paraíso. Se bem
que na virada dos anos 70/80 era impossível chamar de paraíso um país sob as
botas da ditadura militar. Mas o bairro da Penha, na Zona Leste de São Paulo,
era onde Casagrande crescera e cultivara as grandes amizades da juventude. Lá
começou a namorar, fumou maconha pela primeira vez, jogou bola até tarde da
noite e levou as primeiras duras da polícia. É delicioso ser apresentado aos
parceiros Cancela, Jajá, Marquinhos, Ocimar e Magrão ( não o Sócrates), que
integravam a Turma do Veneno. O livro mergulha nesse jeito periférico de ser e
explica as origens da coragem casagrandiana em dizer o que pensa.
Foi dizendo o
que pensa que quase esculhambou a carreira, iniciado aos 13 anos na base do
Corinthians. Brigou com o treinador Brandão em 1981 e foi emprestado para a
Caldense. Seu Walter e Dona Zilda o ajudaram a segurar as pontas, sozinho em
Poços de Caldas, e o retorno ao Parque São Jorge foi triunfal.
Já estamos no
meio do livro e é hora de conhecer os bastidores da democracia corintiana. De
como o jovem cabeludo se tornou um dos melhores amigos do jovem doutor
Sócrates. Da confusão com o goleiro Leão, que chegou ao time e questionou a
democracia, e do verdadeiro sentimento que ele tem pelo então desafeto político
de mangas compridas.
“Tudo na vida
de Casagrande orbitava em torno da experiência democrática no clube. no auge da
empolgação, ele defendia com unhas e dentes os ideais de liberdade, engajava-se
na luta pelas eleições diretas para presidente da república e pelo restabelecimento
pleno dos direitos civis no país. Também concedia entre- vistas a respeito
desses assuntos e estimulava um grande contingente de jovens a abraçar as
mesmas causas: tornara-se um símbolo dos tempos de mudança que se anunciavam
cada vez mais palpáveis. O regime militar tentava se manter a todo custo no
poder, mas já dava sinais claros de esgotamento.”
Casagrande
brilhava em campo e nos palcos. Foi bicampeão paulista 82/83, conheceu artistas
militantes e não via nas drogas um inimigo. Foi pego e preso numa blitz.
Cocaína. Uma droga que ele já conhecia muito bem, mas que naquele dia garante
que foi vítima de uma armação policial.
Os capítulos vão
se seguindo frenéticos e cheios de informação e mergulhos deliciosos no
passado. A relação de amor e ódio com Sócrates, sua ida para o Porto, as
aventuras italianas no Ascoli e no Torino e a confissão de que jogou dopado
quatro vezes. E que isso era normal. “Em geral, injetavam Pervitin no músculo.
Instantaneamente, a pulsação ficava acelerada, o corpo superquente, com
alongamento máximo dos músculos. Podia-se levantar totalmente a perna, a gente
virava bailarina… (risos). Isso realmente melhorava o desempenho, o jogador não
desistia em nenhuma bola. Cansaço? esquece… se fosse preciso, dava para jogar
três partidas seguidas.”
Assim como a
excelente biografia do tenista André Agassi, o livro sobre o Waltinho que virou
Casão emociona e faz refletir. Como ficar indiferente a um parágrafo como este:
“Havia entrado em
convulsão. O seu corpo se debatia e fazia uma tremenda barulheira ao se chocar
com os ladrilhos e o vaso sanitário. Entretido com o computador, Leonardo ouviu
o som da queda e tomou um susto. Veio correndo e bateu na porta: “Pai, pai, o
que está acontecendo? O que está acontecendo?”, repetia, aflito. Casagrande
ainda conseguiu responder: “Calma, não é nada”. Mas também falava palavras desconexas.
só uma coisa passava por sua cabeça naquele instante: “eu não posso morrer
aqui, com meu filho do lado de fora do banheiro. não posso morrer!”.
“Casagrande e
seus demônios” já se tornou um livro obrigatório para quem gosta ou não de
futebol, para quem gosta ou não do personagem-título. Gilvan nos mostra o lado
humano e visceral de um garotão cabeludo que gostava de rock, futebol e
aprendeu a querer mudar o país. Num mundo tão estranho e sem ideais como o de
hoje, terminamos o livro com a estranha sensação de que, por vezes, os demônios
somos nós mesmos.
Fonte: http://globoesporte.globo.com/platb/garamblog/2013/04/06/memorias-do-subsolo/
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